sábado, 13 de julho de 2013

Arabela e Frajola - Capítulo IX

O deputado Samir “Rosalva” de Souza retorna à câmara, com um discurso pronto, para exigir que seja votada uma moção, a fim de elevar o status de Arabela, Beringela e o gato Frajola à condição de terroristas de estado. Na plenária, os olhos dos deputados parecem assustados com a figura bizarra de um homem com cabeça de mulher e uma marca de costura no pescoço, obra do famoso cirurgião Dr. Odorico Josh Jonh.
O deputado levou a melhor não só pelo fato de o voto não ser secreto, como também, pelo pavor dos deputados da oposição diante da monstruosa figura de Samir de Souza. Assim que a votação termina, o deputado passa por cima de toda a cadeia de lideranças e dá ordens explícitas à vigésima cavalaria mecanizada e a trigésima terceira divisão de infantaria para sitiar a comunidade do Crocodilo.
Na comunidade, a Brigada Arabela, formada por quatro mil e quinhentas mulheres armadas, se prepara para enfrentar a tropa anunciada nos jornais manipulados pelo deputado. A população desesperada, corre aos supermercados e estoca comida. Porto City se prepara para viver o maior de todos os flagelos da humanidade, uma guerra civil.
Numa das escolas da comunidade, a professora Natália Flag, com sua imensa habilidade para lidar com comunicação digital, abre seu celular e aciona com um único toque o SMS de alerta que se espalha rapidamente por todas as escolas do país. De forma coordenada, centenas de milhares de professores conduzem milhões de crianças para abrigos escondidos em lugares inusitados nos subterrâneos das vilas, bairros, cidades e estados de Porto City.
Tudo é feito de forma silenciosa e sorrateira, com um planejamento feito nos mínimos detalhes, em casa, em seu apartamento, Arabela apanha Frajola no colo e enquanto lhe faz um carinho, vê, pela TV internacional, as cenas de milhões de pessoas sendo conduzidas pelas ruas do país. Em seguida ela muda de canal para saber o que a imprensa nacional fala e vê apenas o rosto bizarro de Samir de Souza dando um discurso: “Nosso país está sendo invadido por forças estranhas que querem destruir nossas instituições e acabar com a família, em nome de vocês, amado e querido povo, decidimos agir”.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Ladrão de Bicicleta - CONTO

Ladrão de Bicicleta.
(Jiddu Saldanha)

Um amigo se despede de outro numa esquina qualquer de uma cidade do interior do Rio de Janeiro, manda recomendações à sua família, e segue em direção ao poste, lá tem uma surpresa desagradável: Sua bicicleta foi roubada! Ele olha para o lugar onde prendeu-a e vê apenas o vácuo, uma espécie de miragem. Vira-se para um lado e depois outro. Nada. A cidade segue sua rotina, os transeuntes entram e saem dos bancos, os barulhos de todos os dias continuam. Não há qualquer vestígio do ladrão.  Naquele momento, todos são suspeitos. Ele encara pessoas nos olhos, inclusive crianças e até cachorros. Seria um daqueles cães, amigo fiel do ladrão? Pensa em todas as possibilidades, faz todas as simulações. Desolado, liga para casa e fala tristemente à esposa, “amor, roubaram minha bicicleta”.
Numa cidade como esta, um trabalhador sem sua bicicleta é um nada; um zé ninguém; uma pessoa fadada ao fracasso; uma espécie de pária; um cão sem dono; um João sem braço. É com este pensamento que ele para num botequim e toma uma dose de cachaça, come um ovo colorido, lê as notícias de crimes no jornal e sai. Parece atordoado e agora cambaleia em direção ao ponto de ônibus. Lá, vê a imagem do terror; descobre que será mais um na fila do coletivo caro, irá completar a melancolia dos que esperam. Sua expressão, outrora feliz, mergulha na fumaça da desolação. Ele adormece e perde o último carro, até as lotações piratas estão cheias. Caminha solitário com passos lentos. Sente o frio enquanto se deprime cada vez mais. Toma a decisão de ir à pé e faz uma oração: “Jesus, pega em minhas mãos e me conduz até em casa”.
Ele desaparece na neblina e passa a fazer parte da escuridão. Seus sapatos estão gastos, sua roupa exala o cheiro de seu cansaço, na estrada a caminho de casa, ele pega garoa, sereno, um vento sudoeste bem forte lhe fustiga a cara. É uma noite fria, com sons de coruja, canto de grilos, e aviões supersônicos passando sobre sua cabeça. Os contrastes, ora sutis, ora avassaladores, parecem construir o mapa do caminho. Ele atravessa a extensão de um lago seco, vê a vegetação escurecidas, depara com gatos abandonados, caracóis africanos se deslocando e deixando rastro de brilhantes. Ele vê um cavalo morto, um casal sentado numa marquise fazendo sexo. Repara nas lâmpadas queimadas, nos carros que passam em alta velocidade e pequenas casas iluminadas com barulho de TV ligada.
Perto de chegar em casa, a imagem do possível ladrão vem em sua memória. Ele começa a pensar nos políticos, imagina o rosto de um senador, de um deputado, de um chefe de polícia, todos fugindo com sua bicicleta. Desperta o riso em sua alma, abre o portão e é recebido pelo seu cachorro, feliz e preocupado. O cão sente seu cansaço e balança o rabo com mais vigor ainda, salta sobre ele, lambe suas mãos, agradece seu retorno para casa. A esposa abre a porta preocupada, mas com o olhar cheio de ternura, abraça-o feliz, por estar vivo. Toca seus cabelos já meio grisalhos. Ele a abraça e chora.
No banheiro, lava o corpo na água bem quentinha, na sala, encontra um delicioso prato de sopa bem quente e os gatos caminhando em sua frente, como se lhe estivessem abrindo caminho entre os espíritos até a mesa. Ele bebe a sopa com colheradas sonoras, sendo vigiado pela mexas negras da esposa que lhe estende o melhor sorriso. Assim, subitamente, do nada, ela fala a única frase da noite: “Fique tranquilo, meu amor, nesta vida, vão-se os anéis, mas ficam os dedos”!


Cabo Frio, 11.07.2013