Ladrão de Bicicleta.
(Jiddu
Saldanha)
Um amigo se despede de outro numa esquina qualquer de uma
cidade do interior do Rio de Janeiro, manda recomendações à sua família, e
segue em direção ao poste, lá tem uma surpresa desagradável: Sua bicicleta foi
roubada! Ele olha para o lugar onde prendeu-a e vê apenas o vácuo, uma espécie
de miragem. Vira-se para um lado e depois outro. Nada. A cidade segue sua
rotina, os transeuntes entram e saem dos bancos, os barulhos de todos os dias
continuam. Não há qualquer vestígio do ladrão.
Naquele momento, todos são suspeitos. Ele encara pessoas nos olhos,
inclusive crianças e até cachorros. Seria um daqueles cães, amigo fiel do
ladrão? Pensa em todas as possibilidades, faz todas as simulações. Desolado,
liga para casa e fala tristemente à esposa, “amor, roubaram minha bicicleta”.
Numa cidade como esta, um trabalhador sem sua bicicleta é um
nada; um zé ninguém; uma pessoa fadada ao fracasso; uma espécie de pária; um
cão sem dono; um João sem braço. É com este pensamento que ele para num
botequim e toma uma dose de cachaça, come um ovo colorido, lê as notícias de
crimes no jornal e sai. Parece atordoado e agora cambaleia em direção ao ponto
de ônibus. Lá, vê a imagem do terror; descobre que será mais um na fila do
coletivo caro, irá completar a melancolia dos que esperam. Sua expressão,
outrora feliz, mergulha na fumaça da desolação. Ele adormece e perde o último
carro, até as lotações piratas estão cheias. Caminha solitário com passos
lentos. Sente o frio enquanto se deprime cada vez mais. Toma a decisão de ir à
pé e faz uma oração: “Jesus, pega em minhas mãos e me conduz até em casa”.
Ele desaparece na neblina e passa a fazer parte da escuridão.
Seus sapatos estão gastos, sua roupa exala o cheiro de seu cansaço, na estrada
a caminho de casa, ele pega garoa, sereno, um vento sudoeste bem forte lhe
fustiga a cara. É uma noite fria, com sons de coruja, canto de grilos, e aviões
supersônicos passando sobre sua cabeça. Os contrastes, ora sutis, ora
avassaladores, parecem construir o mapa do caminho. Ele atravessa a extensão de
um lago seco, vê a vegetação escurecidas, depara com gatos abandonados,
caracóis africanos se deslocando e deixando rastro de brilhantes. Ele vê um
cavalo morto, um casal sentado numa marquise fazendo sexo. Repara nas lâmpadas
queimadas, nos carros que passam em alta velocidade e pequenas casas iluminadas
com barulho de TV ligada.
Perto de chegar em casa, a imagem do possível ladrão vem em
sua memória. Ele começa a pensar nos políticos, imagina o rosto de um senador,
de um deputado, de um chefe de polícia, todos fugindo com sua bicicleta.
Desperta o riso em sua alma, abre o portão e é recebido pelo seu cachorro,
feliz e preocupado. O cão sente seu cansaço e balança o rabo com mais vigor
ainda, salta sobre ele, lambe suas mãos, agradece seu retorno para casa. A
esposa abre a porta preocupada, mas com o olhar cheio de ternura, abraça-o
feliz, por estar vivo. Toca seus cabelos já meio grisalhos. Ele a abraça e
chora.
No banheiro, lava o corpo na água bem quentinha, na sala,
encontra um delicioso prato de sopa bem quente e os gatos caminhando em sua
frente, como se lhe estivessem abrindo caminho entre os espíritos até a mesa.
Ele bebe a sopa com colheradas sonoras, sendo vigiado pela mexas negras da
esposa que lhe estende o melhor sorriso. Assim, subitamente, do nada, ela fala
a única frase da noite: “Fique tranquilo, meu amor, nesta vida, vão-se os
anéis, mas ficam os dedos”!
Cabo Frio, 11.07.2013
Querido, Jiddu. Que lindo seu conto!!!
ResponderExcluirPassei por um assalto essa semana. Levaram as mochilas com nosso netbooks, HDs, documentos e toda a nossa história registrada em 10 anos de arquivos, fotos e filmagens. Me senti muito mal durante alguns dias, as vezes ainda lamento todas essas perdas. Mas seu conto, me fez suspirar de alívio, me fez sentir um calor no peito, me fez um bem enorme. Obrigada, meu amigo. Amigo de tão longe na distância e tão longe no tempo, mas sempre considerado um amigo. Parabéns! E sucesso! Bjs, Sandra
Querida Sandra, saudades de ti, quanto tempo neh? Lembro de nossas andanças pelas ruas de curitiba e Sta. Catarina, levando nossa arte popular e aprendendo a lidar com nosso ofício. Eu resolvi escrever este conto porque roubaram minha bicicleta e acabei ganhando de presente uma bem melhor. Já o que roubaram de ti não tem preço, nada pode ser mais cruel do que levarem embora, não sei pra onde, a memória de nosso trabalho que é tão única! É realmente uma notícia bem triste, mas com certeza, o fluxo da vida irá te restituir, beijo grande e sucesso no seu trabalho.
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